O Rio Triste

Fernando Namora

No dia 14 de Novembro de 1965, nesta cidade de Lisboa, um homem saiu cedo de casa e já não voltou. Nesse dia e nos que se seguiram. Também não o viram mais no emprego. Chamava‑se, ou chama‑se (pois há quem pense que o caso não foi suficientemente deslindado), Rodrigo dos Santos Abrantes. Um nome vulgar, se exceptuarmos talvez o Rodrigo, e por isso mesmo detestado pelo próprio, que, como se verá mais adiante, projectara mudá‑lo para Rodrigo Macieira ‑ as razões também as saberemos a seu tempo.

Vale a pena esmiuçar, e sobretudo fantasiar (já que as pistas concretas de que dispomos não nos levariam longe), as circunstâncias em que se deu esse desaparecimento. Rodrigo, após o pequeno‑almoço, tomado como sempre sob a ressaca do maldito despertador, isto é, num silêncio amuado e gestos irritadiços, espreitou os ares pela janela das traseiras, logo deduzindo que a friagem recomendava que se precavesse com a gabardina, procurou‑a debalde no cabide do átrio, ali deveria estar (foi pelo menos o que ele pensou, acusadoramente, ao chamar a mulher para que a descobrisse no roupeiro ou lá onde a fizera sumir), resmungou com a demora, conquanto o enervasse muito mais o chape‑chape das chinelas no corredor, deu um brusco jeito ao cabelo ao ver‑se no espelho que ficava por de cima do bengaleiro, gesto esse mais de impaciência do que de preocupação no penteado, e por fim saiu de casa. Escapara por uma unha negra a que o engenheiro do 2.º direito, como sempre furibundo de ter de esperar por alguém, batesse na porta do elevador, a exigir ligeireza, disponibilidade, espaço vital. O engenheiro reagia como se ali no prédio tudo lhe pertencesse, desde a porteira às caixas do correio e ao guarda‑nocturno. A sua tirania abrangia os decibéis de quem regulasse o aparelho de rádio ou a TV para ouvir uma orquestra mais puxada à barulhaça. Todos fanicos, o tipo. Mas tinha um Alfa Romeo de se lhe tirar o chapéu, que protegia metodicamente dos orvalhos com um resguardo de plástico. Enquanto os vizinhos se moíam, de manhã, para espevitar os motores, ele, triunfante e sarcástico, punha aquilo a estrondear ao primeiro contacto.

Aí estava o céu turvo, nem uma aberta. O arrepio nas árvores, que pareciam encolher‑se ao perpassar da aragem. O Tejo, ao fundo, numa pardacenta imobilidade de expectativa. Daí a meses, porém, nem Tejo estático haveria: já tinham erguido os prumos de cimento para o edifício que se apossara do último reduto da colina. O Tejo iria desaparecer.

Não beijara a mulher, é verdade. Nem decerto a beijaria quando regressasse, lá pelas oito da noite, para jantar, a tempo de ouvir as notícias no telejornal. Nada de arrufo, não, embora Teresa, se acaso tivesse ficado a ruminar no facto, talvez o relacionasse com aquela tendência do marido par a responsabilizar de as coisas não estarem nos sítios devidos quando eram necessárias. Como se ele fosse uma pessoa arrumada. Pois não era, ficasse a sabê‑lo. Nem sequer com os seus papéis. Não, Teresa, não se tratou de arrufo. O beijo de despedida, que pertencera ao ritual familiar, perdera continuidade nos últimos tempos (como muitas outras coisas), sem que, aliás, tivesse havido um motivo para que o hábito se alterasse. Um esquecimento hoje, uma emenda tardia amanhã ‑ os hábitos criam‑se e perdem‑se as mais das vezes sem se saber porquê. Ou então esvaziam‑se. E será beijo o enjoado resvalar da boca por uma face?

O engenheiro do 2.º direito, todo ele fumos de escape, já dera a volta uns metros abaixo, pisando sem cerimónias o traço contínuo. Não estava para ir quase até ao fundo da avenida e só aí inverter o sentido da marcha, havia regulamentos que apenas tinham por objectivo chatear as pessoas. Um Alfa Romeo, chiça, forros de couro. Teresa ficara ressentida, sabia‑o. Com a filha ia acontecendo o mesmo, de quem seria a culpa? Nem quando, à noite, se aferrolhava no quarto, a pequena tinha uma mimalhice, uma palavra macia, já lhe parecendo excessivo o até amanhã dito no extremo do corredor. A porta do quarto a fechar‑se sorrateiramente, daí a nada o gira‑discos, um cheiro a tabaco que empestava a casa. Ao menos o beijo de despedida, Cecília, que custa um afago? Culpa dele, sem dúvida, que dera o exemplo. Aquele seu feitio todo recolhido para dentro, Teresa tinha razão. As expressões de afectuosidade sentia‑as teatreiras, uma fiteirice que o punha ainda mais bisonho e acautelado. Ou talvez nem fosse bem assim, pois também lhe dava para os gestos espaventosos, quase sempre dirigidos às pessoas que menos os justificavam. Até por isso mesmo, Teresa. Que tipo. Mas quem é que não era feito de contra‑senso? A secura de Cecília é que mais lhe custava. Alfa Romeo de um raio, pisgou‑se que levava fogo.

Ia com essas coisas na ideia (o cérebro nunca tinha descanso, um fervedouro de todos os momentos) quando, de súbito, viu o autocarro, o seu autocarro, aquele que deveria deixá‑lo no emprego às horas da praxe, avançar a menos de cem metros. Num relance, pareceu‑lhe que vinham passageiros de pé junto do condutor, o que era mau prenúncio relativamente às possibilidades de conseguir lugar. A lotação ou já estaria esgotada ou iria esgotar‑se num rufo assim que chegasse à próxima paragem, no outro lado da avenida, mais abaixo, em frente do snack especializado em frangos de churrasco. A bicha formara‑se há uns bons minutos, não tardaria a descrever um círculo em roda da banca de jornais. O costume. O do 2.º direito bem poderia tê‑lo levado no Alfa Romeo, pelo menos até ao Chile.[1] É o levas. Nem naquela manhã, há umas três semanas, em que o céu se desfazia em chuva, não dando tempo a que se corresse ao abrigo de uma porta. Repassado até aos ossos ‑ e o engenheiro vira‑o. Ou antes: fingira que o não vira. Era assim às horas de ponta, pela manhã e pela tarde. Rodrigo não tinha que se surpreender. Devia era apressar‑se e contar com o pior, mais nada. Atravessar ligeiro a avenida, por entre dois tufões de automóveis, rezando a todas as almas para que muitas das pessoas que estavam na bicha fossem candidatas a outro autocarro, o 19, ou o 26, que iam para bairros fabris. Quase perdeu o equilíbrio ao saltar para o passeio, junto da paragem uma velhota refilou de o ver esbaforido e desastrado. Nesse preciso momento, o autocarro abria a porta dianteira para esvaziar a miséria de dois passageiros. A mesma coisa que nada, já na porta da entrada um grupo de umas oito pessoas competia, competia à bruta, pelo direito a uma vaga. O condutor deixou subir metade delas, contou‑as como um pastor a certificar‑se do rebanho, fez um sinal lá para diante, o motorista deu um safanão à alavanca das mudanças, que se arrastou doridamente, como se nunca tivesse sido oleada.

Namora, Fernando, O RioTriste, romance, Livraria Bertrand, Amadora 1982, pp. 7‑11


[1]   Praça do Chile em Lisboa.

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