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Ressurreição

Domingos Monteiro

A mulher tirou as mãos debaixo do avental e perguntou numa voz despida de qualquer inflexão amável:

‑ O que deseja? ‑ Depois, atentando melhor na figura miserável do interlocutor, acrescentou, asperamente elucidativa: ‑ A entrada não é por aqui, é pela escada de serviço…

Mas o homem não despegava. Tinha uma teimosia humilde e inabalável:

‑ Quero falar ao senhor… Ele é que me mandou entrar…

‑ A si? ‑ Havia uma ironia maldosa na interrogação. ‑ Ah, ele manda chamar muita gente e depois não a recebe… Às vezes é uma romaria…

Calou‑se um instante e fixou o homem.

Nos olhos dele havia uma doçura atenta e compassiva. Parecia‑lhe que aquele homem, com o fato remendado, o cabelo rapado, as alpercatas rotas, a tiritar de frio, o ar clássico do vagabundo das estradas, estava com pena dela. Sentiu‑se chocada e, ao mesmo tempo, intimidada. A sua vaidade agressiva de porteira de casa rica, diluira‑se. Pensou que era absurdo, que era o contrário do que devia ser, mas aquele homem estava com pena dela. Teve um sobressalto de vergonha e inquiriu quase humilde:

‑ É por causa de algum anúncio, não é?

‑ Sim, um anúncio a chamar por mim… Não o li, que não sei ler nem escrever. Foi um companheiro que me disse…

‑ E quem digo ao senhor que é?

‑ Diga‑lhe que é Nosso Senhor Jesus Cristo.

A mulher afastou‑se deixando a porta entreaberta.

O homem ouviu o ruído de passos no corredor e depois bater a uma porta.

‑ Está aqui um homem que quer falar com V. Ex.ª.

‑ Quem é?

‑ Diz que é Nosso Senhor Jesus Cristo.

‑ Não conheço…

Houve um instante de silêncio e depois, alguém gritou de dentro:

‑ Ah, já sei… Espere… Mande entrar.

‑ Por aqui…

Foi guiando os passos do homem até à porta do fundo.

‑ Já aqui está.

‑ Que entre…

O pintor ficou a olhar para o homem que acabava de chegar e desatou a rir.

‑ Essa é boa! Essa é muito boa!… Então você julga que…

Vestia com o trajo dos artistas de Montmartre ‑ casaco de veludo, o cachimbo ao canto da boca, numa das mãos a paleta, e, na outra, pincel.

A luz entrava diluída pela cúpula envidraçada do atelier, e caía em cheio sobre o modelo. Estava nua, apenas com um ligeiro sendal a envolver‑lhe a cintura e o cabelo negro e comprido atirado para a frente a aflorar as pontas dos seios. Via‑se que era uma pose procurada e um pouco artificial.

Ironicamente, o pintor fez as apresentações:

‑ O Cristo… A Madalena…

‑ Ó filho, deixa‑te de graças… Fecha mas é a porta que estou com frio.

Nos lábios deslizou‑lhe um sorriso, ao mesmo tempo, impúdico e contrafeito: ‑ Posso vestir‑me?

‑ Podes.

Num gesto lento foi fechar a porta.

‑ A mim sucede‑me cada uma… ‑ Virou‑se para o homem e inquiriu: ‑ Você veio por causa do anúncio? Com certeza? Do anúncio em que eu pedia um modelo para o Cristo da minha alegoria: “Nosso Senhor voltou ao mundo”?…

‑ Sim Senhor.

‑ E você, com esses cabelos cortados à escovinha, as barbas rapadas, supunha‑se nas condições? Ou pensa que basta ter fome, ter o rosto esquálido e os olhos lânguidos e sonhadores? ‑ Estava agora junto dele e fitava‑o curiosamente: ‑ Foi a necessidade apenas que o trouxe, ou quê? Se eu pusesse um anúncio para me passear o cão, você também aparecia, não é verdade? ‑ A voz compadeceu‑se: ‑ Eu bem sei que a necessidade não tem lei e é um topa‑a‑tudo. Em todo o caso… Espere… Ó Zulmira, vem cá…

A cabeça da rapariga assomou por detrás do biombo onde estava a vestir‑se.

‑ Já vou…

Aproximou‑se vagarosamente.

Vestida, tornara‑se numa rapariguinha da cidade, quase insignificante. Uma espécie de vergonha travava‑lhe os passos.

‑ Anda cá ver ‑ gritou impaciente. ‑ Tu já viste alguma vez uns olhos assim? ‑ Sentia‑se que estava impressionado. ‑ É curioso! Repara bem… Tem o fulgor dos olhos dos grandes iniciados… E a boca, ahn? Que energia e que candura, ao mesmo tempo… E o queixo? Repara bem no vigor e na doçura desta linha… ‑ O entusiasmo caiu‑lhe de repente. ‑ Mas sem barba e sem cabelo, nada feito. Não lhe vou pôr uma barba e um cabelo postiços, nem vou imaginá‑las… Sou um realista, percebeu?… Preciso de ver e palpar… Só sei pintar assim: com pelos, com carnes, com sangue…

Estava encolerizado.

‑ Ó seu idiota!… Porque é que você rapou o cabelo e cortou as barbas?

‑ Não fui eu, foram eles…

‑ Eles, quem?

‑ Eles, os guardas.

Falava numa voz clara e harmoniosa, a voz bíblica das parábolas.

Antologia do Conto Português Contemporâneo, selecção, prefácio e notas biobibliográficas de Álvaro Salema, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, Lisboa 1984, pp. 99‑101