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Um instante na eternidade

Fausto Lopo de Carvalho

Nunca soube que história era aquela do coelho. Mais tarde, numa das poucas caçadas em que participou com alguns amigos, num couto, propriedade de grande senhor da região, matou, pela primeira e última vez, dois coelhos. Diziam os comparsas que ele tinha jeito, era um bom ferro, logo à primeira, dois coelhos. Pois, confirmava pouco entusiasmado, dois coelhos e olhou para Mercedes que por ali andava também com uma espingarda, fingindo caçar. Veio o batedor, que não senhor, não eram dois, eram três, pois matara à paulada um deles que já trazia uma pata ferida por um tiro. Pronto, então seriam três. Mercedes disse-lhe que parecia impossível. Ele, tão generoso, matar três coelhos! Ainda não se tinha passado a cena do quarto, quando ela se sentou na cama: também estariam longe ainda os tempos quando ele ia a casa dela conversar, ao fim da tarde. E quem era essa Mercedes que fora com ele à caça e com ele conversava aos fins da tarde? Solteira, vivendo só, recolhendo os rendimentos da herança do pai. Não se lhe conhecia marido, amores, devaneios de qualquer espécie. Mas realmente matar três coelhos era de mais. E a criada, que lhe dissera parecer-se ele com um coelho, no decorrer do tempo, nos encontros partilhados entre ele e o primo Ramsés II, já ia apreciando mais requintadamente os seus ímpetos, e confessando exausta não poder mais, que tinha os rins num figo. É claro, ficou grávida. Como havia de ser, como não havia de ser. Que grande sarilho. Ao que tinha levado o desafio do coelho! Estabeleceu um acordo com Ramsés II, pois seria de um pois seria do outro, e obtiveram o apoio logístico da velha governanta da casa, que ai estes meninos, que marotos, e ela é uma desavergonhada, e se calhar é do sargento de Artilharia I, que sai na sua companhia às tardes dos domingos, se a mãezinha e se o paizinho sabem, como há-de ser meu Deus. Vieram primeiro as pílulas da farmácia do senhor Tadeu, considerado perito no desfazer de sarilhos daquela natureza. Nada! Tudo na mesma; a criada andava agoniada, tinha tonturas, o que não a coibia de satisfazer os ardores dos meninos, já agora, perdida por um perdida por mil, tanto fazia, mais a mais o sargento de Artilharia I continuava a sair com ela aos domingos. Recorreu ao padre amigo do Pedro, seu padrinho e que, segundo diziam, era progressista mas deveria ser uma boa qualidade. O padre levou as mãos à cabeça. Que desgraça, que miséria, valha-nos o Senhor. Desmanchos? Não, isso nunca. Matar um ser humano? Um embrião? E foram muitas vezes? Ele, o primo e o sargento? E ela é jovem, é jeitosa, é ardente? Que Deus nos perdoe, pois não faltava mais nada, um filho, o escândalo, o remorso da consciência. De quem? Pois de quem? Podia também ser do sargento. Mas ela era mesmo jovem? Jesus, que pecado. E ardente? Santo Deus, que tentação. Bem, em resumo, ele padre não aconselhava o aborto, era contra a lei de Deus. Mas o problema era dele, pecador, que consultasse a sua consciência. É claro, não aconselhava, mas ele é que sabia e Deus sempre ia perdoando os pecados. Obtida, assim, a neutralidade da Igreja perante as misérias deste mundo, recorreu ao apoio do tio Alexandre, que ficou acabrunhado, aflito, e receoso. Que diabo, que sarilho. Logo três, era de força. Três, isto é, foram! Quem teria sido o primeiro? Ele também matara três coelhos, mas foi mais tarde. Pois. Então ele, tio Alexandre, tinha uma empregada amiga de uma parteira que, segundo diziam, era de uma competência a toda a prova. E a governanta, de harmonia com as indicações da empregada do tio Alexandre, e com a neutra cumplicidade do padre, padrinho do Pedro, arranjou uma desculpa à senhora e levou-a à parteira e foi um ar que lhe deu! O tio Alexandre pagou, a governanta respirou fundo, a Igreja perdoou e a rapariga foi despedida, directa para os braços de outros meninos, como é habitual nestas situações, não excluindo as tardes de domingo com o sargento de Artilharia I, como convinha aos hábitos burgueses e à boa consciência das famílias bem formadas.

Esta história fazia rir Mercedes. E ele que naquela tarde matara três coelhos… Detestava comer coelho. Ficou com uma nódoa na axila, devido ao recuo da coronha da espingarda, ao disparar. Preferia veado ou corça, como aquela que ele ou Jorge tinham morto, no fim da tarde, nas florestas da Vestefália.

E se o senhor não vem tomar o pequeno-almoço fica tudo frio. Levantou-se, finalmente, da secretária. Era sempre aquilo; o pensamento, as imagens, as recordações envolviam-no como se estivesse dentro de uma esfera; rolava no seu interior, apanhava a memória com ambas as mãos, eram bolas dentro de outras bolas, como os átomos que constituíam a matéria, os iões, ou lá o que lhe quisessem chamar. Sentia-se empurrado de uma para outra ideia, de uma para outra imagem, de uma para outra passagem da vida ou da imaginação de outras passagens. E Joana continuava a protestar que as torradas estavam a arrefecer, como naquela tarde ele arrefecia, as mãos geladas, segurando a espingarda. Jütte esperava por ele. Não, agora não, depois de matares o veado. Levantou-se. Era preciso sempre levantar-se. Ela deixou-o esparralhado por cima da erva e fugiu para o quarto, e ele agora também se levantava para ir comer as torradas da Joana que estavam a arrefecer. E Manuela telefonava sempre, que mais isto, e mais aquilo e Mónica já tinha um namoro. E que rebentara uma bomba no super-mercado. Sim, uma bomba. As torradas estavam óptimas. Joana, de sobrolho carregado. Toda a noite sentado. Aquele Verão tão quente. Parecia um velho. Velhos são os trapos. Pois, dizia ela. Toda a noite sentado. Que quer, adormeci, aquela tarde de Verão, no silêncio da casa à tarde, quando as árvores vão parando, a noite caindo sobre o vento e a memória abrindo as portas do passado. O senhor não está bem. Já a mãe assim lho dizia: que parecia um mágico. E ele nessa altura, teria uns vinte anos, subia a escadaria de S. Bento dirigindo-se à Torre do Tombo para aperfeiçoar os seus conhecimentos de paleografia. Pedro, um dia, vira-o subir a escadaria. Disse-lhe que parecia um velho curvado e triste. Parecia realmente um velho, nesse tempo, sem Emílias, Isabéis ou Manuelas. A sua companhia era apenas uma angústia latente que absurdamente procurava esquecer na leitura de velhos pergaminhos sem interesse. Todo ele se sentia submerso em ideias, problemas, hipóteses. Ao ler Kant, Leibnitz, Russel e tantos outros pensadores clássicos e contemporâneos; ouvindo as interpretações dos mestres de então, reconhecendo a decrepitude dos velhos dogmas, vendo Deus a afastar-se, a matéria a diluir-se, a realidade do mundo a desintegrar-se… Tudo seria realmente ilusão? Tudo apenas uma criação da sua alma, do seu espírito, da sua actividade pensante? Seriam o espaço e o tempo conceitos relativos e subjectivos? Captariam os sentidos, apenas, impulsos que se transformavam em imagens, sons, percepções? A sensação seria apenas o aspecto elementar da actividade representativa do espírito? Não existiria a matéria na expressão clássica do termo? Não revelou a física contemporânea que tudo era energia, não existindo a chamada matéria inerte? O que interessava, o que deveria interessar a todos os jovens, afirmavam os mestres, era desenvolver o espírito crítico, lutando contra ideias feitas e dogmas do passado. Nos anos da sua inquieta adolescência tudo isso era perder exactamente o sentido do que amava.

Carvalho, Fausto Lopo de, Uminstante na eternidade, O chão da palavra/ficção, Vega, Lisboa s.a., pp. 14‑22