Ilha Grande Fechada

Daniel de Sá

Irene chorava, deitada de bruços sobre a cama, mordendo os lençóis de dor e desespero. Desde o primeiro dia do namoro nunca pensara que pudesse vir a acontecer-lhe tamanho desgosto. Desgosto não era palavra para aquilo, desgosto dizia a mãe se o gato lhe comia um pinto, ou se lhe secava a avenca. Desgosto dizia-se de saber que morria um velho, mas João morrera voluntariamente, matara-se-lhe na alma sabendo que a deixava morta-viva, ela que vivera três anos e meio por ele, para ele, que pensava em si mesma porque era a melhor maneira de começar um pensamento para ele, que pensava nele como a melhor maneira de pensar em si mesma. Apertou a cara num acto de raiva, espremeu os seios até que a dor lhe conteve a fúria, mas aqueles gestos ainda não queriam dizer nada além de raiva e fúria, depois desceu a mão direita pelo corpo abaixo, deixando a marca dos dedos no caminho para a porta do seu ventre, condenado a ser inútil como um relógio sem corda, e esse gesto então já foi o símbolo de arrancar da alma um corpo que lhe estava destinado ou de arrancar do corpo uma alma que o incarnara também. João era tão seu como qualquer homem casado seria da sua mulher, talvez mais do que muitos que não ligam à mulher nem aos filhos. Se era para ter sido assim, antes houvesse voltado morto das terras de Angola, que ao menos as saudades seriam de um homem bom. Tornara-se um canalha, apetecia-lhe ir às fotografias que ele lhe mandara e rasá-las uma a uma já que não podia esfanicar-lhe a alma, que era o que ele bem merecia.

Mas o que ela mais queria era estar morta. Percebia agora como é que há gente capaz de se matar, mas no que ela pensava não era em morrer de morte, era numa outra espécie de morrer, sem corpo para enterrar, só o espírito esquecido de tudo, que a porta nunca mais se abrisse para ninguém, que o tempo detivesse pasmado a olhar para ela indefinidamente imóvel sobre a cama, sentindo a sua dor como uma coisa muito longe e sem medo de mudanças, que o relógio calaria o tic-tac, que as moscas ficariam paradas e silenciosas, que não precisaria sequer de respirar, que não haveria mais quem tivesse merecido o seu amor nem quem a tivesse amado, que tudo fosse quieto e escuro como será o coração das pedras ou a coberta do céu onde não há estrelas.

Muito ódio pode quem muito pode amar, Irene esticou a mão esquerda para a mesinha-de-cabeceira, tacteou à procura das fotografias, via-as já em pedacinhos mais numerosos que as suas lágrimas, mais pequenos que o inverso do tamanho da sua dor, elas vieram-lhe nos dedos, indefesas, a primeira com o João a sorrir num ar de vitória sobre a vida que deu mais fundo sentido ao sofrimento de Irene, que só não chorou mais forte porque chorar mais do que assim era impossível. Começou a folheá-las como quem desfolha um malmequer de bem-me-quer, todas elas diziam “tu me enganas”, parecia mentira, ali estava João, o mesmo, não mudara, a alma fica no retrato sempre igual. O João a fumar um cigarro, o João a aprender a dar tiros, o João a trepar por uma corda, o João no barco que ia endoidecendo os dois, o João com um preto e o José da Elvira, o João mais um magote de soldados, onde estava o Mariano, que morrera, e o alferes que também morrera, tinham ambos cara de mortos, quando as pessoas morrem as fotografias também morrem, não é como quando enquanto estão vivas que ficam sempre iguais, é como nos cemitérios onde os retratos já não têm alma, com um ar de mortos entre os dois braços da cruz mesmo que estejam sorrindo, mesmo que sejam novos como o Mariano e o alferes, Irene pensava que era capaz de perceber um morto em qualquer retrato, ainda que não o conhecesse nem soubesse que estava morto. Aqui, o João tem um pé sobre uma pacaça, gesto tantas vezes repetido para dizer vitória, ninguém sabe se ele fez o mesmo com algum preto e teve vergonha de mandar a fotografia, ninguém sabe com quantas pretas se deitou, talvez com muitas, talvez lhes apertasse sem pudor os grandes seios, que ouvira dizer que elas atiravam para trás das costas e assim davam de mamar aos filhos amarrados à cintura; nesta, o João come um bocado de uma carne qualquer, está ridículo como toda a gente com a cara de banda quando enche a boca e entra assim numa fotografia, numa mão tem a carne mordida e na outra uma cerveja; e, nesta agora deve estar bêbado como um cacho, de camisa desabotoada e em calções, abraçado a meia dúzia de garrafas, os olhos brilhando de alegria irracional, duas estrelas cadentes no momento exacto em que vão explodir; o João deitado na cama, com uma cortina quase transparente por causa dos mosquitos; o João mais um amigo que não sabe quem é, abraçados como dois amantes; o João… sempre o João, que vai deixar de existir ao menos nas fotografias, que não mais estará ali à disposição de que ela pense nele vendo-o, que nunca mais o verá, voluntariamente nunca mais há-de vê-lo, que o abrase o fogo do inferno depois de morrer de mil mortes, que aquela única morte dela vale essas mil e todas as mortes de que possa morrer uma pessoa. Os seus dedos já tocam os dois cantos de cima da fotografia em que o João está sorrindo com um ar de vitória sobre a vida, vai rasgá-la de alto a baixo, começando a parti-lo pela testa, um braço e uma perna para cada lado, vai ficar vesgo e amputado numa metade e noutra, depois há-de cortá-lo pela cintura, depois pelos joelhos e pelos ombros, depois mais e mais enquanto houver um pedacinho de papel que baste para segurar entre as unhas com que não pode chegar-lhe à alma. Olha-o uma última vez inteiro; continua a sorrir como se não estivesse para acontecer-lhe nada. Tem vontade de lhe cuspir na cara, mas não iria resistir a que ele continuasse mesmo depois disso, por debaixo do cuspo do seu desprezo, e finalmente aceita que ainda o ama, soltando um grito que é um uivo e uma palavra de amor mais dolorosa e profunda do que todas que lhe dissera em três anos e meio de promessas e de esperanças. Atira então o corpo sobre o João do sorriso, dos pretos e dos mortos, deita-se com ele e a sua pacaça, com ele e o seu olhar estúpido de bêbado, com ele e os seus amigos todos a fingir que riem aquecendo o gelo das fotografias com o calor de choro desse corpo repudiado que se recusa a não ser dele, e vive só porque ainda não morreu.

Sá, Daniel de, Ilha Grande Fechada, Edições Salamandra, Lisboa 1992, pp. 106‑110

Deixe um comentário